Sob o olhar da mãe, a professora de arte Alice, Aimê, oito anos, transitou entre as obras da Bienal do Mercosul no cais do porto - Imagem: Genaro Joner
As reações de quem visita a Bienal do Mercosul
Espante-se. Confesse que sentiu uma pontinha de medo, isso não é vergonha. Admita que achou tal coisa repugnante, não faz mal criticar. Sobretudo, divirta-se e pense ao visitar as obras de arte da 7ª Bienal do Mercosul, no centro de Porto Alegre.
Para testar as reações de quem ainda não viu a exposição, Zero Hora convidou a professora Alice Bemvenuti, 39 anos, e sua filha, Aimê, oito anos, a incursionar pela parte da mostra que está nos armazéns do cais do porto. Ontem, ZH publicou artigo de Alice que instiga as pessoas a não terem medo de arte contemporânea.
Acompanhe o passeio surpreendente das duas
A primeira visão de Alice e Aimê, na bienal, é a cena Variação sobre o Santo Job, do colombiano José Restrepo. Deparam com uma imagem medonha projetada na parede: um homem esquálido, só de cuecas, usando uma máscara atemorizante, com buracos para os olhos e a boca. No chão, um casulo de bicho-da-seda absorve o reflexo da horrenda criatura.
– Mãe, o que é isso? – assusta-se Aimê.
– Eu que te pergunto – devolve Alice, para despertar a curiosidade da filha.
– Tô com medo... – diz a menina.
Professora de Arte na Ulbra, Alice interpreta que o homem ossudo e mascarado poderia simbolizar o pássaro que devora o obreiro bicho-da-seda, isto é, a morte. Enquanto fala, Aimê perde seus receios, circunda o casulo, agachada, para observá-lo melhor. Subitamente, perde o interesse:
– Que nojo! Vamos, mãe, não tô mais aguentando ver isso.
Próxima parada: o quadro El Viento, do argentino Sergio de Loof. Alice e Aimê olham um amontoado de roupas, plumas, chapéus, bonés, flores e quinquilharias. As opiniões divergem. A mãe acha que são coisas usadas, descartadas, que foram juntadas por alguma ventania. A filha acredita que são objetos ainda não utilizados, carregados por um pé-de-vento.
Obras de arte são assim mesmo, infundem emoções opostas. Depende do olhar de cada um.
– A sensação que fica é: o que vão fazer com isso? Vai apodrecer? Virar entulho? – questiona Alice.
O quadro Limite, do belga-brasileiro Mário Peixoto, oscila do pavor ao deslumbramento. Ao entrar num labirinto às escuras, curvilíneo, Aimê pede a mão de Alice, demonstrando precaução.
– O que tem aí dentro? – pergunta.
– Nem imagino – diz a mãe.
A curva leva a uma enorme sala. Da parede irrompe um mar tranquilo, camaleônico entre o verde e o azul, de ondas sossegadas e murmurantes. Extasiadas, Alice e a filha sentam-se diante da tela, como se estivessem nas areias da praia de Tramandaí.
– Aimê, olha a quantidade de cores dessas águas!
– Mãe, tem uma mulher caminhando sobre o mar, no horizonte!
– Será que essa água vai chegar até nós? – incita a mãe.
– Ã-ã, não chega – diz Aimê.
Em seguida, quando aparece um bando de alunos, Alice continua a provocação, em tom de brincadeira:
– Podem se sentar, mas cuidado para que a água do mar não molhe vocês.
Cada peça é diferente, desafiadora, com seus mistérios. Diante de uma escultura de ferro, do britânico Ryan Gander, mãe e filha se admiram da construção disforme.
– Aimê, isso aqui não te parece...
Ela não termina a pergunta, pois a garota logo responde:
– É um dinossauro com a cabeça afundada no peito e tem mais de quatro patas.
– Será que ele é manso? – prossegue Alice.
– Não quero nem saber – diz a menina.
Algumas obras de arte são associadas ao imaginário de Aimê, ao que ela vê na televisão ou lê nos livros infantis. Quando penetram num labirinto de vidros, que provoca múltiplos reflexos, a menina diz que se lembrou dos dragões perdidos num jogo de espelhos. Para Alice, isso é natural, crianças observam as peças de forma mais lúdica.
Também diretora do Museu do Trem, de São Leopoldo, Alice recomenda que as pessoas visitem a 7ª Bienal do Mercosul de mente aberta. Como havia se maravilhado anteriormente, ao entrar num corredor escuro e recurvo que conduzira ao mar, Aimê quer testar o que escondia outra construção semelhante. Decepciona-se.
O interior do novo labirinto é o cenário da peça de teatro Breath, do autor irlandês Samuel Beckett. É provavelmente a mais curta da dramaturgia mundial. São apenas 67 segundos, mas de prender a respiração. Alice e Aimê acomodam-se bem à frente.
Quando o palco se ilumina, surge o monturo de lixo, disperso como se fosse o rasto de um tsunami. Enquanto contemplam o cenário apocalíptico, mãe e filha ouvem dois vagidos desesperados, de um bebê que carrega uma fome ancestral. Aterrada, Aimê pergunta:
– Mãe, posso apertar a tua mão até esmagar ela?
– Vamos pensar no que a gente está sentindo – diz Alice.
– Mas estou com muito medo. Não quero conversar sobre isso – encerra a menina.
Expressando que deseja uma pausa na visitação, talvez para se recompor, Aimê pede:
– Agora posso comprar um picolé? Tô com sede.
– Depois, aqui dentro não é permitido se alimentar – explica a mãe.
– Então quero ver o rio – insiste a menina, referindo-se ao Guaíba.
Alice decide passar para o outro armazém, que tem obras mais apropriadas a crianças. Encontra uma árvore ressequida, pendente do teto, cujos galhos mortos oferecem um fruto insólito: fones para escutar música.
– Os fones estão convidando: nos usem – comenta Alice.
– É música indiana – observa Aimê.
A filha está mais à vontade no segundo armazém do cais. Chama a mãe para ver uma Kombi, entupida de areia do mar, com um coqueiro saindo da tolda. Depois, vê um carrinho de mão cheio de areia, onde estão conchas e uma estrela-do-mar rosada. A menina franze o nariz, novamente desapontada.
– Isso é de verdade, mãe?
Diante do silêncio de Alice, ela interpela:
– Se botar a estrela-do-mar na água, ela vai ter vida de novo?
Alice não responde, mas fica contente por notar que a filha se preocupa com a natureza. Ao lado, uma bicicleta, transportando galões de água mineral com peixinhos vermelhos dentro, não atrai mãe e filha.
– Essa obra não me parece educativa, é inexpressiva – argumenta Alice, talvez incomodada com o nado agônico dos peixes.
O final da visitação, na parte temática Árvore Magnética, é o mais divertido. Aimê se encanta com um módulo lunar, do artista Paulo Nenflidio, de São Paulo. Embasbacada com a engenhoca, feita com tubos de PVC e manta de proteção térmica, ela é subitamente envolvida por jatos de vapor e bolhas de sabão. Como se estivesse em Marte, Aimê vê a espaçonave disparar alarmes, sons e flashes coloridos.
– Obras de arte parecem brincadeira, mas não são. Elas emanam coisas sérias, que nos levam a pensar – diz Alice, ao deixar a bienal, sorvendo picolés com a filha.