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sábado, 8 de outubro de 2011

Atrapalhando o tráfego por Montserrat Martins

Atrapalhando o tráfego 
por Montserrat Martins
“Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”, verso do Chico Buarque, aconteceu domingo passado em Porto Alegre. Segunda-feira o jornal de maior circulação daqui trazia na capa “acidente causa tumulto na freeway”.
A manchete não citava morte, afinal foi um simples operário que morreu, o destaque mesmo era que havia atrapalhado o tráfego. “Construção”, a obra do Chico composta há 40 anos, infelizmente segue sendo mais atual do que nunca. Porto Alegre está voltada para construções que geram grande expectativa popular, mas nada sabemos sobre a proteção à vida destes trabalhadores. Uma obra menos badalada, mas a mais importante para a saúde – referente ao saneamento do Guaíba – também teve acidente recente que custou a vida de pelo menos dois operários, além de ferimentos graves em outros. 
O noticiário, agora, relata os procedimentos para indiciar operários responsáveis por atear fogo no seu próprio alojamento, em revolta pela localização deste que os obrigava a atravessar a freeway para ir ao trabalho ou qualquer outro local da cidade. (Construir o alojamento do mesmo lado da freeway, supõe-se, seria mais oneroso, se preocupar com riscos à vida dos operários acarretaria custos maiores para as obras). Um grupo de 150 trabalhadores já pediu demissão, assustados com a criminalização do incêndio aos alojamentos. Eles não tem um advogado “com grife” para alegar que praticaram o incêndio revoltados, “sob intensa emoção” como se diz. 
Operários (ao contrário de empreiteira) não tem assessoria de imprensa para dar a sua versão livremente, sem medo, por isso não acredito na versão oficial, baseada nos depoimentos à polícia, de que apenas um teria ateado fogo a tudo, sem ajuda ou conivência dos demais. Na minha prática profissional, sendo psiquiatra, aprendi que grupos acuados tem líderes (mesmo que eventuais) capazes de “assumir a bronca” em nome dos outros. Quando não damos atenção aos problemas sociais, eles se tornam casos de polícia e vão para a Justiça – contra os que menos podem se defender. Não ouvi todas as notícias, não ouvi falar sobre possíveis responsáveis pelos acidentes que causaram estas 3 mortes.
A decisão de construir o alojamento do outro lado da freeway foi de quem, mesmo? E as condições de trabalho na obra de saneamento, previam os riscos de acidente (como acabou havendo)? Não ouvi nada a respeito, não parece relevante para o noticiário. Não ouvi notícias sobre acompanhamento dos vereadores, por exemplo, das condições de trabalho nas grandes obras na Capital. 
Caísse um avião com 3 gaúchos a bordo, saberíamos os nomes das vítimas, suas famílias seriam entrevistadas, choraríamos com os parentes no enterro vendo tudo pela TV ao vivo. Nas quedas de avião, há reportagens completas até sobre a “caixa-preta”. Não há “caixa-preta” para mortes de operários. A morte de 3 deles em duas obras diferentes, no espaço de poucas semanas, teve cobertura bastante discreta em relação à daqueles que são efetivamente tratados como “cidadãos”. Quando era criança, meu pai me ensinou que a vida “não tem preço”, que nada compensa a perda de uma vida humana. Sei que muitos ouviram isso em sua criação, do valor inestimável da vida de cada ser humano. Resta saber quem é considerado “ser humano”, na prática. O pior é assistir à criminalização dos revoltosos que atearam fogo ao alojamento. Será esse o crime maior ? Algo está errado no reino da Dinamarca, diz um clássico. E em Porto Alegre, onde a “Construção” do Chico Buarque permanece tragicamente atual.
Fonte: Sul 21

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