As commodities, a fome e cinco milhões de crianças pobres
Por Silvana Melo
Já tem os dedos adestrados na separação do lixo. Uma seleção que não é feita pelo que enche as bolsas de sobras de alimentos, vidros e pilhas descarregadas. Na bolsa ao lado, o cachorro teve a vantagem: encontrou um valioso pedaço de carne cozida. Ganindo baixinho, colocou o rabo entre as pernas e dobrou a esquina com o assado na boca.
Com o destino de andar recolhendo bocados para a mesa do dia, não tem tempo para ficar atualizado e ficar sabendo que no país há entre 2.200.000 e 11.000.000 de pobres, segundo estatísticas do Indec ou da Universidade Católica Argentina. Para ele, as coisas estão claras: na padaria, um quilo de pão vale 15 pesos. Na rua, com um pouco de sorte, pode disputar com algumas pombas alguns biscoitos gordurosos da semana passada.
Quase 2 milhões de pessoas costumam sentir fome e não ter o alimento a mão. Quatro em cada dez crianças e adolescentes vivem na pobreza na Argentina. São quase 5 milhões; 800 mil (9,5%) são indigentes. Têm fome ou comem muito mal. Estão subnutridos, barrigudos, sem ferro, descalcificados e morrem de mortes que poderiam ser evitadas. E estes são números da UCA. Para o Indec, a fome está erradicada, como o desemprego no Chaco ou a pobreza em La Rioja.
Deve ser por isso que na capital e na zona metropolitana são jogadas no lixo 670 toneladas de alimentos reutilizáveis. Ou a fome se acabou e em vez de qualquer outra coisa jogam no lixo 1.675.000 pratos de comida (La Nación fez as contas!) ou a fábrica da iniquidade conseguiu seu produto mais sofisticado e perfeito: 5% da população com fome e no Ceamse, toneladas de comida jogadas no aterro sanitário para deleite de gaivotas e vermes. Poucas vezes foi tão contundente e bem sucedida uma alegoria da injustiça.
A Instituição de Engenheiros Mecânicos de Londres assegura que a metade das 4 bilhões de toneladas de alimentos produzidos anualmente no globo nunca chegam a ser consumidos. Enquanto que quase 1 bilhão de pessoas dispersas na África, na Ásia e na América Latina sofrem fome e morrem de enfermidades causadas pela fome e desnutrição; há várias centenas de milhões ‘indigestados’, que comem tanto ao ponto de não aguentar mais e jogar no lixo a metade da comida do prato. No Reino Unido, 3 de cada 10 hortaliças nem sequer são colhidas porque sua estética não corresponde ao que o consumidor deseja comprar na feira. Cenoura torcida fica na terra.
Na Argentina, as frutas e verduras são vendidas antes de ser colhidas. OS excedentes costumam ser cargas indesejáveis para os produtores que não têm caminhões; nem combustível; nem possibilidade de distribuí-las; nem dinheiro para manter câmaras frigoríficas. Então, são jogadas às margens dos caminhos. Como os produtores de maçã, que jogam fora as maçãs em protesto ao baixíssimo preço de mercado. Ou os produtores de leite, que o derramam para protestar contra Mastellone, um ‘faraó’ à custa de sua miséria.
Costumam enumerar dezenas de razões. Uma lei de 2004, sobre responsabilidade civil, deixa sem respaldo aos empresários que doam. Um intoxicado, um julgamento. É preferível o lixo. Os hipermercados jogam no Ceamse toneladas de iogurtes devido a defeitos na embalagem, data de vencimento próxima. Milhares de privilegiados que conseguiram superar barreiras policiais, pedágios levaram o que puderam para comer ou vender.
Os restaurantes fazem comida demais, os produtos que têm pouca aceitação no mercado, os da estação e os excedentes também têm destino nos aterros sanitários. Isso se explica a partir de razões culturais, produtivas e burocráticas. Porém, há uma configuração sistêmica que determina quem come e quem não come. Quem passa fome e quem não passa. Quem viverá no céu e quem viverá no inferno.
Quem se salvará e quem não se salvará
Por isso, a ONU e sua brigada antifome, a FAO, decidiram que o melhor para que os pobres não morram de fome descaradamente é que comam insetos. De fato, em alguns países da África, da Ásia e da América Latina os desesperados do mundo já se alimentam de besouros, formigas, abelhas, vespas; lagartas e grilos; larvas e mariposas. Todos com "um alto valor nutritivo”. E "contêm tantas proteínas quanto a carne ou o pescado”.
Na África central, em Camarões, em Moçambique, nos dois Congos e na Zâmbia –diz o relatório quase orgulhosamente- as pessoas praticam a entomofagia; ou seja, comem milhares de toneladas de insetos por ano porque não têm acesso à carne e nem ao pescado; nem a uma sobremesa de creme e chocolate, que abre a portinha da felicidade à língua e à alma.
A quem importa o sabor das carnes tenras, a cor do açafrão, o desfrute do perfume de um pêssego ou uma geleia de frutas no pão do dia. Se comer besouros nutre, esse será o prato. Quem rechace larvas e grilos não será um faminto. O suíço Jean Ziegler, no próprio ‘estômago’ da ONU, decide que "vivemos uma ordem canibal no mundo. O mercado alimentício está controlado por uma dezena de sociedades multinacionais imensamente poderosas. Controlam 85% do milho, do arroz, do azeite e fixam seu preço”. Então, "esses amos do mundo decidem diariamente quem vai morrer de fome e quem vai viver”.
A agricultura do globo produz para alimentar 12 bilhões de pessoas. Dos 7 bilhões de habitantes, 1 bilhão passa fome. A Argentina produz para alimentar 400 milhões de pessoas. Quase 5 milhões de suas crianças são pobres. Um bebê de um ano e meio morreu na terça-feira em La Rioja por desnutrição aguda; é uma criança assassinada pelo capitalismo financeiro argentino e mundial.
Assassinado por um golpe de soja. Por um balaço de commodities na Bolsa de Valores.
Fonte: Agência ADITAL
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