Bem-vindo ao Mundo Novo
Artigo de Montserrat Martins
Feliz Ano Novo! Sendo psiquiatra devo desejar, à la Simão Bacamarte, que você seja feliz mas não entre em euforia, caso fique eufórico observe se depois vem a depressão, se os sintomas persistirem procure um médico. E se você, tal como Bernard Marx em Admirável Mundo Novo, sente algum desconforto social e pessoal, pode perceber que à sua volta as pessoas já estão devidamente adaptadas, com uma prescrição adequada às suas necessidades biológicas.
No passado era comum um tipo de “receita de vizinha” em que uma vizinha perguntava o que tomar para dor de garganta e a outra “receitava” um antibiótico, porque “eu tomo e dá certo”. Hoje as vizinhas já trocam receitas não só para si mas para toda família, filhos e netos, que incluem Ritalina, Risperidona, Rivotril, Carbamazepina, Lítio.
O Brave New World chegou para ficar, tal como previsto há setenta anos pelo profético Aldous Huxley, consagrando também o Dr. Simão Bacamarte, alienista machadiano, que completa cento e trinta anos de vida em 2012. É visto com naturalidade que nas instituições para jovens com problemas de conduta o uso do tratamento psiquiátrico se torne amplamente majoritário, o que é relacionado à redução da frequência de tumultos, justificando o acerto da estratégia. Nos colégios, no entanto, ainda surpreende a alguns o uso cada vez mais precoce de medicamentos em crianças, desde pequenas, para melhorar o rendimento escolar e o relacionamento com colegas, professores e pais.
O que esse cenário nos diz sobre nossa sociedade, que prenúncios nos traz para o futuro? Machado e Huxley nos anteciparam a era atual com suas previsões feitas um século antes. O que temos a dizer para as próximas gerações? Ingressamos na era da tecnologia biológica comportamental antes de termos investido em uma tecnologia humana relacional. Na falta de tempo para o diálogo, regulamos o nosso equilíbrio emocional com substâncias químicas.
Ante as demandas de maior produtividade e das novas tecnologias voltadas ao lazer, desenvolvemos formas de prazer individuais, fazendo com que a principal modalidade de ativismo hoje seja a dos nossos dedos, no videogame. Pode faltar água na cidade, nesse verão? Ah, sim, nós vimos na TV. Alguém vai resolver. Senão, vamos pagar mais caro pela água, é preciso ganhar mais.
Os livros de Medicina preconizavam, há trinta anos, que uma criança não deveria receber psicofármacos se não estivesse em psicoterapia, um método voltado a abrir espaço para as suas emoções na sua identidade psicológica e na interação com seus familiares. Hoje, mesmo os hospitais-escola universitários já passam direto para a fase de medicalização dos sintomas, para “otimizar” o tempo dispendido em atendimentos e dar conta de uma demanda cada vez mais massificada. Sim, uma sociedade de massas na qual só é onipresente o Big Brother, antecipado por George Orwell em ’1984′.
Definitivamente, você não está sozinho, seja qual for o seu caso. Se já estiver devidamente atendido e medicado, aproveite o que a tecnologia química tem para lhe oferecer. Se ainda busca por alternativas mais naturais para viver em harmonia, encontrará aliados entre os que acreditam que um mundo melhor é possível, para o que não basta nos adaptarmos às regras vigentes, é necessário também compreender nossa natureza mais profundamente.
Não sabemos, hoje, como resolver o problema da água ou do clima, apesar das promessas de que novas tecnologias resolverão tudo, sem grandes preocupações preservacionistas. Pretendemos saber como manter o equilíbrio pessoal e emocional por meios químicos, deixando de atribuir significado a sinais e sintomas como expressão da nossa natureza humana em desequilítbrio, cujas necessidades emocionais e relacionais não são atendidas pelo atual status quo. Nossos dilemas, hoje, são próprios do século XXI, um mundo complexo e sem precedentes, a não ser na imaginação machadiana e de outros gênios proféticos, Huxley e Orwell.
*Montserrat Martins, colunista do EcoDebate, é Psiquiatra