Barragem destruída na cidade de Rio Largo, em Alagoas (Leo Caldas)
A origem do tsunami que varreu o Nordeste
VEJA.com percorreu 250 km da região e encontrou várias barragens destruídas
Por Fernando Mello e Marco Túlio Pires
"Passaram um rádio para avisar que poderia vir água para cá. Começamos a guardar as coisas, mas não deu tempo", contou Enildo Bras Oliveira, morador de São José da Laje (AL).
Uma das cenas mais impressionantes registradas da devastação causada pela chuva no Nordeste mostra uma espécie de tsunami varrendo a cidade de Rio Largo (AL), a 29 quilômetros de Maceió. Porém, esse avanço desenfreado das águas - flagrado por um cinegrafista amador - não corresponde ao que se vê em um padrão normal de inundação.
"Essa quantidade de chuva não seria capaz de provocar uma vazão tão grande", explica Ricardo Sarmento Tenório, professor de meteorologia da Universidade Federal de Alagoas e coordenador do Sistema de Radar Metereológico de Alagoas (Sirmal).
Ninguém sabe afirmar com exatidão o que aconteceu, mas a primeira hipótese que surge é a de que a violência da enxurrada foi motivada pelo rompimento de barragens, situadas ao longo de rios que cortam Pernambuco e Alagoas. "É a única explicação possível", enfatiza Tenório.
VEJA seguiu o caminho das águas que arrasaram os estados nordestinos e comprovou o rompimento das barragens, ao longo de mais de 250 quilômetros.
Imagem: Leo CaldasEnildo Bras Oliveira e a Barragem de Serra Grande, que também foi destruída.
Primeira parada - Por volta de 18h de sexta-feira passada, Enildo Bras Oliveira, 40 anos, recebeu a informação de que uma barragem se rompera na cidade de Canhotinho (PE), a 186 quilômetros de Recife.
"Passaram um rádio para a usina e avisaram que poderia vir água para cá. Começamos a guardar as coisas, mas não deu tempo", contou Oliveira. Ele mora em São José da Laje (AL), cidade a 97 quilômetros de Maceió que fica às margens do rio Canhoto, próximo à usina Serra Grande, onde trabalha. Naquele momento, secava as peças de seu computador, aberto sob o sol.
O rio que passa por Canhotinho é o Mundau. Até aí tudo bem. Isso não seria motivo de preocupação para os moradores de São José da Laje. Mas a água veio e se acumulou na barragem da própria usina. Naquela região, muitas usinas têm suas próprias barragens para produzir energia ou acumular água para resfriar máquinas utilizadas na produção de açúcar. Para se ter uma ideia, a estimativa do governo de Pernambuco é de que existam, em todo o Nordeste, cerca de 100.000 pequenas barragens.
Trajeto de destruição - Naquela sexta-feira, uma das duas barragens construídas na Serra Grande acumulou água durante horas. Até que não aguentou e cedeu. O rio desceu com força, carregando árvores enormes, pedaços de pau, folhagens. Tudo isso ficou sob uma ponte a poucos metros dali. Ou seja, a água novamente foi represada e retornou para as casas que já haviam sido atingidas. Horas depois, a ponte também não aguentou e cedeu, liberando ainda mais as águas do rio.
Depois de São José da Laje, as águas do Canhoto se juntaram às do rio Mundaú, que arrasou cidades como União dos Palmares, a 77 quilômetros de Maceió, e Branquinha, a 67 quilômetros de distância da capital. Enildo Oliveira contou que a maior tromba d´água atingiu sua casa por volta das 21h. "Meu irmão, que mora em União dos Palmares, me contou que a água chegou lá com mais força duas horas depois", afirmou.
Com as águas vindas de outros rios, assim como árvores e outros objetos, o rio Mundaú seguiu seu trajeto de destruição. A última parada foi a cidade de Rio Largo, colada à capital Maceió, a apenas 29 quilômetros. Lá, as águas destruíram a lateral de uma barragem, deslocando toda a linha do trem e derrubando uma ponte. "A água veio com muita força e arrancou a parede lateral. Nunca tivemos nada assim", afirmou o aposentado Claudionor Gomes.
Lei das águas não pegou - Sancionada em 1997, a lei 9.433, conhecida como ‘Lei das águas’, criou a Agência Nacional de Águas e teoricamente deveria regulamentar o uso dos rios para geração de energia, saneamento e abastecimento.
Não faltam planos, comitês e conselhos para fiscalizar e planejar o uso racional das águas. Mas nada disso impediu que os rios da Zona da Mata de Pernambuco e Alagoas se tornassem armadilhas para a população que habita suas margens.
“Caberia aos órgãos fiscalizadores, como as secretarias do Meio Ambiente, de Recursos Hídricos e de Infraestrutura, impedir a ocupação urbana desordenada nos rios. As enchentes refletem essa falta de planejamento”, diz João Clímaco Soares, membro do Conselho Nacional de Recursos Hídricos.
De acordo com a lei, não deveria ser fácil conseguir autorização para construir uma barragem. É preciso ter um projeto, que é encaminhado para o estado. O órgão ambiental avalia a questão dos impactos e a secretaria avalia o consumo de água existente na região (por exemplo, a quantidade de água disponível existente e o percentual já captado). Decide, então, se confere ou não a outorga. Se for um rio estadual, quem aprova é a Secretaria de Recursos Hídricos. S for federal, é a Agência Nacional de Águas.
Mas existem os casos chamados de insignificantes, barragens pequenas que não precisam de autorização oficial para serem implantadas. “Para cada situação existe uma abertura legal, tão pequena que não precisa pedir a ninguém. Os chamados casos insignificantes são os de abastecimento humano e agricultura familiar, por exemplo”, afirma Almir Cirilo, secretário de recursos hídricos de Pernambuco.
As barragens insignificantes são aquelas com capacidade de até 10.000 metros cúbicos. Porém, a definição varia de lugar pra lugar, conforme a região. “Isso depende de cada legislação, não trabalhamos com volume. Trabalhamos com a vazão aproveitada. Onde tem mais água, a vazão insignificante é maior. O critério é ter mais ou menos água”, diz Cirilo.
Além dos casos insignificantes, barragens de grande vazão construídas antes da lei, ou seja, antes de 1997, não foram devidamente planejadas. “Havia uma concepção que não levava em conta o uso múltiplo que hoje as barragens devem possuir. Não se pensava em barragens para o controle de enchentes naquela época, elas serviam só para acumular água”, afirma Soares. “Hoje em dia é preciso levar em conta itens como o volume de água, o tamanho, o impacto ambiental, controle de vazão. Caso contrário, elas podem potencializar as enchentes.”
Outro item previsto na lei, a cobrança pelo uso das águas dos rios, seja para abastecimento ou para geração de energia, também não pegou. Hoje, 13 anos e meio depois da aprovação da lei, apenas dois rios em São Paulo cobram das empresas situadas em sua margem pelo uso dos recursos hídricos, segundo Soares. “Este ano foi aprovada a cobrança também no Rio São Francisco.”
Fonte: VEJA.ComImagens: Blog de Adrian Marchi