O sofrimento da África e o impasse no clima
No que diz respeito ao clima, é preciso fazer como os sul-africanos: cada pessoa buscar dentro de si mesma razões para alegria
Por Washington Novaes*
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Mas o sofrimento é uma constante na vida dos sul-africanos, desde que o colonialismo europeu retalhou o país, misturou as 11 etnias que ocupavam o território, levou umas a lutarem contra outras e ainda implantou o apartheid. Lutar contra ele custou a Mandela 27 anos na prisão - de onde saiu para liderar a luta pacífica de seu povo contra a discriminação racial autorizada por lei. Vitorioso, ensinou à sua gente o que todos repetem hoje: "Perdoar, sim; esquecer, jamais."
E é nesse território onde a separação legal acabou, mas na prática continua, que ocorre a Copa, com a televisão levando para todo o mundo a imagem - aparentemente paradoxal - de pessoas que riem muito, cantam muito e dançam na rua sempre que se juntam três ou quatro sul-africanos. Em 2002, na Cúpula Mundial do Desenvolvimento, em Johannesburgo, o autor destas linhas perguntou a um jovem negro, motorista de táxi, onde seu povo, tão sofrido, encontrava tanta alegria.
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Não faltariam razões para tristeza. O modelo do passado, banido da lei, continua na prática. Johannesburgo é dividida entre bairros ricos de brancos europeus (ou seus descendentes) e bairros pobres, como Soweto, com seus muitos milhões de negros. Só funcionam ônibus no começo da manhã, levando negros para o trabalho nos bairros e no comércio ricos, e antes de cair a noite, para levá-los de volta. Brancos visitantes são aconselhados a não andarem sozinhos nas ruas.
A África do Sul, segundo relatórios da ONU, é um dos dez países com maior desigualdade de renda no mundo, parte dessa África subsaariana que tem 555 milhões de habitantes (eram 292 milhões em 1981). No território sul-africano são 79,8% de "nativos" e 9,1% de brancos, além de 8,9% de "mestiços" e 2,1% de hindus e asiáticos; 44% da população vive em zonas rurais nesse país com 1,22 milhão de km2. Mas 5,7 milhões de pessoas (mais de 10% da população) são vítimas da aids, que atinge 350 mil a cada ano.
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Outro drama grave está no desemprego, que atinge 27% da população (22% segundo os números oficiais), mas com participação muito maior na faixa abaixo de 35 anos: 65%. Parte da violência está explicada aí: são 28 mil assassinatos/ano (o dobro do número brasileiro), a maior parte entre as pessoas mais pobres - 34% dos sul-africanos vivem com menos de US$ 2 por dia (menos de R$ 4), segundo o Banco Mundial. E só 5% dos negros conseguem chegar à universidade.
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Não bastasse, a África (e a África do Sul) é uma das regiões que mais sofrem com "desastres climáticos", principalmente secas acentuadas. De 1995 para cá, a África do Sul já viu diminuírem em 4% seus recursos hídricos, num quadro extremamente difícil, já que foram vendidos "direitos" sobre parte deles - o que impede que as pessoas mais pobres tenham acesso.
Sobram razões, assim, para a África subsaariana e os sul-africanos serem das vozes mais contundentes nas reuniões da Convenção do Clima - como ocorreu ainda nas últimas duas semanas, em Bonn. Ali, de pouco adiantaram as pressões de sul-africanos, dos demais subsaarianos, dos representantes dos países-ilhas (ameaçados de desaparecer com a elevação do nível dos oceanos). No texto lá discutido - na tentativa de chegar a um acordo para a reunião de novembro, em Cancún -, o G-77 e China disseram que "a ênfase foi colocada incorretamente nos cortes das emissões pelos países pobres, e não pelos ricos" (Estado, 12/6).
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Uma discussão tão empacada que o próprio secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, já anda dizendo que não considera provável que se chegue a acordo este ano. Pior, o demissionário secretário da convenção, Yvo de Boer, agora afirma que a discussão pode "levar ainda uma década".
Então, é preciso fazer como os sul-africanos: cada pessoa buscar dentro de si mesma razões para alegria.
*Washington Novaes é jornalista
Fonte: O Estado de S. Paulo
Em Rede: Planeta Sustentável
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